STJ reforça limites à base de cálculo presumida do ICMS-ST

A 1ª Turma do Superior Tribunal de Justiça consolidou, recentemente, um importante precedente sobre o regime de substituição tributária do ICMS, ao decidir que os Estados não podem aplicar simultaneamente dois modelos distintos de base de cálculo presumida — o Preço Médio Ponderado ao Consumidor Final (PMPF) e a Margem de Valor Agregado (MVA). A decisão, proferida no julgamento do Recurso Especial nº 2.139.696/SP, de relatoria do ministro Gurgel de Faria, envolve a empresa Ambev S.A. e o Fisco paulista, e reafirma a importância da segurança jurídica e da hierarquia normativa no âmbito do direito tributário.
Caso concreto e contexto da controvérsia
O processo teve origem em um auto de infração lavrado pelo estado de São Paulo, que exigia da Ambev R$ 258 mil de ICMS referente ao período de julho a dezembro de 2009. O cerne da controvérsia residia na metodologia utilizada para a apuração da base de cálculo presumida no regime de substituição tributária do ICMS, mecanismo pelo qual a responsabilidade pelo recolhimento do imposto é atribuída a um contribuinte situado no início da cadeia, geralmente o fabricante ou importador, antes da ocorrência do fato gerador presumido.
A empresa utilizou o Preço Médio Ponderado ao Consumidor Final (PMPF) como base de cálculo, conforme previsto na legislação estadual. O Fisco, no entanto, defendeu que, sempre que o valor praticado nas operações próprias do contribuinte fosse superior ao PMPF, deveria prevalecer a Margem de Valor Agregado (MVA), prevista em outra norma regulamentar.
Essa prática, contudo, levou à coexistência de dois critérios distintos para a determinação da base de cálculo presumida — um atrelado a valores médios de mercado (PMPF) e outro a margens de agregação prefixadas (MVA). O resultado era a criação de um ambiente de incerteza e insegurança jurídica, pois o contribuinte não teria como prever qual parâmetro seria efetivamente adotado pelo Estado em cada situação concreta.
Decisão do STJ e seus fundamentos
O ministro Gurgel de Faria, relator do caso, afastou expressamente a possibilidade de aplicação simultânea dos dois modelos. O voto foi no sentido de que não existe autorização legal para que os fiscos estaduais alternem ou combinem critérios de base de cálculo presumida conforme o valor da operação do contribuinte.
Segundo o relator, o PMPF já é um parâmetro que busca refletir o preço médio ponderado de mercado, obtido a partir de levantamento amostral de valores praticados no varejo. Assim, as variações individuais de preço não podem justificar o afastamento desse modelo, sob pena de se desvirtuar a própria natureza do regime de substituição tributária, que é justamente a presunção do valor final de venda ao consumidor, e não a mensuração caso a caso.
O ministro também ressaltou a ausência de fundamento legal para a criação de um sistema híbrido de cálculo. Ao fazê-lo, reafirmou um princípio estruturante do direito tributário: a reserva de lei em matéria tributária (artigo 150, I, da Constituição). Ou seja, a instituição e a definição dos elementos essenciais do tributo — como a base de cálculo — dependem de previsão em lei formal, e não podem ser alteradas por portarias, decretos ou instruções normativas.
Limites da regulamentação infralegal e a Portaria CAT 111/2009
Um ponto de destaque do julgamento é a referência à Portaria CAT 111/2009, norma infralegal editada pela Secretaria da Fazenda paulista para disciplinar aspectos práticos do regime de substituição tributária do ICMS-ST. Essa portaria, na prática, permitia a aplicação combinada de PMPF e MVA, criando um modelo de “ajuste” conforme o preço praticado pelo contribuinte.
O STJ, contudo, deixou claro que a portaria não pode extrapolar os limites fixados pela Lei Complementar nº 87/1996 (Lei Kandir) — norma hierarquicamente superior e que regula a matéria de forma nacional. A decisão reforça, portanto, o princípio da hierarquia das normas, segundo o qual atos administrativos e regulamentares têm função apenas de detalhar e operacionalizar a aplicação da lei, e não de modificá-la ou ampliar seu alcance.
Ao limitar o poder regulamentar da administração tributária, o tribunal preserva o equilíbrio federativo e evita que os entes subnacionais — neste caso, os estados — ampliem sua competência tributária além dos contornos estabelecidos pela legislação complementar.
Segurança jurídica e previsibilidade na substituição tributária
A decisão do STJ também reafirma a importância da segurança jurídica e da previsibilidade das obrigações fiscais. No regime de substituição tributária, o contribuinte substituto assume a responsabilidade pelo recolhimento antecipado do imposto, com base em uma estimativa do valor da operação final.
Se o Fisco pudesse, a posteriori, alterar o critério de cálculo com base em resultados efetivos ou margens individuais, todo o sistema de presunção perderia sentido. Como bem observou o relator, admitir dois modelos simultâneos de base presumida geraria distorções e tornaria incerto o montante devido, o que viola os princípios da legalidade, da isonomia e da capacidade contributiva.
Nesse ponto, a decisão se harmoniza com a jurisprudência já consolidada do STJ e do Supremo Tribunal Federal [1] quanto à impossibilidade de ajustes unilaterais da base presumida após o recolhimento, salvo nos casos expressamente previstos de restituição (artigo 150, §7º, da Constituição). Trata-se, portanto, de uma reafirmação do modelo de presunção fechada, em que o cálculo antecipado é definitivo, garantindo segurança tanto ao Fisco quanto ao contribuinte.
Impactos práticos para contribuintes e administrações tributárias
Do ponto de vista prático, a decisão traz benefícios diretos para os contribuintes, ao assegurar maior estabilidade e clareza na aplicação das normas relativas ao ICMS-ST. A adoção de um único modelo de base presumida — o PMPF, definido em levantamento técnico e previamente divulgado — simplifica o cumprimento das obrigações acessórias e reduz o risco de autuações baseadas em interpretações variáveis.
Para os estados, embora o entendimento possa restringir margens de manobra fiscal, ele também contribui para a uniformização e a transparência do sistema tributário, reduzindo litígios e fortalecendo a confiança dos agentes econômicos na coerência das regras fiscais.
Em um contexto de reforma tributária em curso, que prevê a substituição do ICMS pelo novo Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), decisões como essa são particularmente relevantes, pois reforçam princípios que devem orientar o novo modelo de tributação do consumo — simplicidade, neutralidade e segurança jurídica.
Além disso, o precedente tende a influenciar julgamentos futuros sobre a compatibilidade entre atos infralegais estaduais e a Lei Kandir, especialmente em setores de alta tributação indireta, como bebidas, combustíveis e produtos alimentícios.
Considerações finais
A decisão da 1ª Turma do STJ no REsp 2.139.696/SP representa mais do que um precedente pontual: é um marco de reafirmação da legalidade e da coerência normativa no regime de substituição tributária do ICMS. Ao vedar a aplicação simultânea de dois modelos de base presumida, o tribunal preserva a lógica do sistema, evita distorções arrecadatórias e resguarda a previsibilidade das relações entre Fisco e contribuinte.
Em tempos de transição tributária e de crescente complexidade regulatória, esse tipo de decisão atua como bússola interpretativa, reforçando que a eficácia das normas fiscais depende de sua clareza e estabilidade. Afinal, como demonstra a experiência prática, o excesso de regulamentação e a sobreposição de critérios interpretativos não ampliam a arrecadação — apenas aumentam a litigiosidade e reduzem a confiança dos agentes econômicos.
O julgamento também evidencia que a busca por eficiência arrecadatória não pode se sobrepor à legalidade. A segurança jurídica, longe de ser obstáculo à tributação, é seu alicerce: é ela que garante a previsibilidade necessária para que o contribuinte cumpra suas obrigações e o Estado exerça seu poder de tributar de forma legítima.
Referências:
Superior Tribunal de Justiça. REsp nº 2.139.696/SP, rel. min. Gurgel de Faria, 1ª Turma, julgado em 16/09/2025.
Lei Complementar nº 87/1996 (Lei Kandir).
Portaria CAT nº 111/2009, Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo.
Constituição Federal, art. 150, I, e art. 150, §7º.
[1] Tema 201, em Repercussão Geral: “É devida a restituição da diferença do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços – ICMS pago a mais no regime de substituição tributária para frente se a base de cálculo efetiva da operação for inferior à presumida”.
Ana Clara Vaz de Melo Miranda
é advogada tributária do Marcelo Tostes Advogados. Especialista em Direito Tributário pela PUC-MG.