Desembargador de MT gastou R$ 1,3 milhão com cartão de crédito

A média mensal – R$ 113 mil – representa um salto de quase três vezes sobre os R$ 41 mil mensais gastos por ele nos quatro anos anteriores, segundo Relatório de Análise de Polícia Judiciária anexado aos autos de investigação.
O magistrado está afastado das funções desde agosto do ano passado e agora é alvo de um procedimento administrativo disciplinar no Conselho Nacional de Justiça.
Ferreira Filho nega ligação com esquema de corrupção na Corte. Por meio de sua defesa, ele afirmou ao CNJ que acumulou seu patrimônio em ‘mais de 30 anos de judicatura’ e que ‘a alegada incompatibilidade entre seus rendimentos e seus gastos é imprecisa’.
No ano em que gastou R$ 1,3 milhão só no cartão de crédito, o desembargador recebeu R$ 1.192.130,58 de salários pagos pelo Tribunal de Justiça, sua única fonte de renda declarada.
Para os investigadores, a diferença entre receita e despesas no cartão é indicativo de recebimentos de propinas.
A partir da quebra do sigilo bancário e fiscal – decretada ‘em razão dos fortíssimos elementos indicativos’ de recebimento de propinas – os investigadores analisaram o fluxo de três contas bancárias de Ferreira Filho, além das despesas com o cartão de crédito.
O documento aponta que, em 2023, a fatura do cartão de crédito de João Ferreira Filho disparou de um montante médio de R$ 41.916,66 mensais para ‘expressivos’ e ‘notáveis’ R$ 113.681,64 mensais.
Os investigadores consideram que esse montante indica ‘um sensível aumento em seus gastos e em seu padrão de vida, exata e precisamente, no ano em que os principais diálogos suspeitos firmados com o advogado Roberto Zampieri foram travados, reforçando a percepção de que, de fato, houve o recebimento de vantagens indevidas por parte do desembargador’.
Roberto Zampieri foi o pivô do esquema de venda de sentenças que se teria instalado em gabinetes de magistrados em Mato Grosso. Em dezembro de 2023, ele foi executado a tiros à porta de seu escritório em Cuiabá.
Prodigalidade
Para o corregedor nacional de Justiça, ministro Mauro Campbell, ‘é pouco provável que João Ferreira Filho, em um suposto ato de prodigalidade, tenha despendido muito mais do que auferiu a título de salários, consumindo temerariamente o saldo de todas as suas economias realizadas em anos anteriores com bens de luxo e outros ativos de alto valor, se de fato não tivesse contado com outros rendimentos’.
O ministro cita a estreita ligação do desembargador com o lobista que circulava sob reverências e deferências na Corte.
A suspeita é de que Zampieri pagou propinas a Ferreira Filho em troca de sentenças favoráveis a seus pleitos. A defesa nega tudo.
A investigação pontua que, no mesmo ano de 2023 – ano em que o desembargador ‘quase triplicou sua fatura de cartão de crédito’, gastando muito mais do que de fato recebeu -, foi constatado, a partir da análise das declarações de ajuste anual, que o magistrado adquiriu de uma só vez dois apartamentos no empreendimento Soul, em Cuiabá.
Esses imóveis ele declarou à Receita em valores muito menores do que de fato pagou – 28 vezes em um caso, 21 vezes em outro, aponta o relatório.
Anteriormente, o magistrado havia adquirido outro apartamento de alto padrão e o declarou ao Fisco por um valor 43 vezes menor.
A análise fiscal do desembargador mapeou desde sua remuneração no Tribunal de Justiça. Foram encontrados 309 registros de movimentações a título de ‘recebimento de salário’.
Chamou a atenção dos investigadores os gastos em cartão de crédito em 2023 ‘superiores aos valores auferidos do tribunal’.
“Enquanto há o registro de entradas de R$ 1.192.130,58 em créditos salariais verificou-se gastos no valor de R$ 1.364.179,76 em cartões de crédito, por exemplo”, assinala o relatório.
“É dizer, malgrado o desembargador João Ferreira Filho tivesse recebido durante o ano de 2023, a quantia de R$ 1.192.130,58, foram gastos em sua fatura de cartão de crédito nada menos do que R$ 1.364.179,76, a indicar que, muito possivelmente, os recursos empregados para tal finalidade tenham sido oriundos de vantagens indevidas recebidas por intermédio de terceiros, ou quitados por meio do pagamento de boletos”, diz um trecho do Relatório de Análise de Polícia Judiciária.
Em 2019, o desembargador gastou R$ 618 mil no crédito – naquele ano, recebeu R$ 287 mil de salários do Tribunal. Em 2020, pagou R$ 423 mil e recebeu R$ 760 mil.
No ano seguinte, R$ 413 mil gastos e R$ 728 mil recebidos. Em 2022, pagou R$ 558 mil no crédito e ganhou R$ 915 mil. Em 2023 a conta chegou a R$ 1,3 milhão – a Corte pagou a ele R$ 1,1 milhão.
Nesses cinco anos, Ferreira Filho desembolsou R$ 3,37 milhões para quitação das faturas do cartão de crédito.
A partir da quebra de sigilo do magistrado, os investigadores analisaram também três contas bancárias dele e a compatibilidade de seus gastos com os rendimentos (subsídios) pagos pela Corte estadual.
‘Altíssimo luxo’
A perícia foi concentrada nessas três principais contas do magistrado que, no período investigado, movimentaram quantias elevadas.
Os investigadores acreditam ter identificado ‘movimentação de valores manifestamente superiores à auferida a título de salários recebidos do Tribunal de Justiça de Mato Grosso’.
Conta 1/Bradesco: Durante o período investigado, 2023, o magistrado recebeu R$ 4.856.776,87 em sua conta salário, transferindo-os para a conta corrente no mesmo banco. “Não obstante, a despeito do aporte de R$ 4.856.776,87 em sua conta corrente, durante o período investigado, observa-se que o magistrado movimentou um total de R$ 7.356.132,91 em débitos e R$ 7.344.188,26 em créditos”, diz o documento.
Conta 2/Bradesco: Inicialmente foram constatadas 31 operações no período, relativas a transferências de recursos do magistrado para sua mulher, Maria de Lourdes Ferreira, em um total de R$ 991.700,00. O rastreamento indica que, para além da transferência de recursos para a aquisição de bens de luxo, foram identificadas transferências bancárias no ano de 2023, para uma empresa especializada na estruturação de projetos imobiliários de alto padrão em um total de R$ 86 mil a partir da conta de Ferreira Filho no Bradesco.
Conta 3/Santander: apenas no período compreendido entre 3 de janeiro de 2023 e 13 de maio de 2024, foram direcionados R$ 401.292,90 em 39 transações para lojas relacionadas a joias e relógios de alto luxo. Em uma aquisição foram gastos R$ 151.700. Em outra, R$ 60.900. Mais uma, no valor de R$ 49.070. Outra de R$ 45.500.
Em relação a possíveis gastos com a compra de imóveis, foram identificadas duas transferências ocorridas nos dias 11 e 12 de abril de 2023 no valor de R$ 100 mil cada uma para uma empresa de ‘participações e negócios’.
Foram direcionados ainda R$ 74.657,01 para uma empresa de empreendimentos no período de 20 de fevereiro de 2020 a 8 de julho de 2024. A partir da conta mantida no Banco Santander os investigadores verificaram o envio de R$ 53.627,61 para outra empresa de empreendimentos imobiliários.
Foram constatadas as seguintes entradas na conta bancária:
Ingresso de R$ 3.084.750,00 para a conta do desembargador no período de 30 de setembro de 2019 a 26 de julho de 2024, através de 98 transações
Ingresso de R$ 225 mil da conta de Maria de Lourdes Ferreira Guimarães, mulher do desembargador, no período de 4 de janeiro de 2023 a 24 de julho de 2024, através de cinco transações.
Ingresso de R$ 149.500,00 da conta de Ferreira Filho entre 11 de janeiro de 2022 a 30 de novembro de 2023, através de 15 transações.
A partir dessa conta corrente foram destinados valores para outras contas:
Saída de R$ 59.500,00 para outra conta do próprio titular João Ferreira Filho entre 14 de setembro de 2020 a 2 de maio de 2024, através de 08 transações.
Saída de R$ 1.117.000,00 para a conta de Maria de Lourdes Ferreira Guimarães, mulher do magistrado, entre 5 de janeiro de 2021 a 25 de julho de 2024, através de 19 transações.
Saída de R$ 190.000,00 para outra conta em nome de João Ferreira entre 7 de abril de 2020 a 20 de dezembro de 2022, através de 6 transações.
“Além da expressiva movimentação de recursos financeiros, foi constatada, a partir da análise da declaração de operações com cartões de crédito (DECRED), uma manifesta incompatibilidade entre os gastos realizados no ano de 2023, pelo desembargador João Ferreira Filho – data dos principais diálogos firmados com o advogado Roberto Zampieri -, e sua renda formalmente declarada”, diz o relatório.
Os investigadores avaliam que é possível consolidar inconsistências observadas no cruzamento entre a declaração de ajuste anual do imposto de renda de pessoas físicas, com as declarações de operações imobiliárias da seguinte forma:
“Da mera leitura da tabela acima apresentada, observa-se com grande obviedade que, ora João Ferreira Filho, pura e simplesmente, se absteve de declarar os imóveis adquiridos ou posteriormente alienados em sua declaração de ajuste anual do imposto de renda de pessoas físicas, ora o requerido houve por bem comunicar a compra de tais bens em sua declaração de imposto de renda com grande atraso, informando ao fisco valores manifestamente subdeclarados e incompatíveis com o valor real do bem adquirido”, assinala o documento.
Para o corregedor Mauro Campbell, a análise detalhada da movimentação bancária do desembargador e das informações consignadas em sua declaração de ajuste anual do Imposto de Renda, em cotejo com a base dados de órgãos que registram de forma instantânea receitas, gastos e evolução patrimonial – DECRED, DIMOB, DOI e E-FINANCEIRA -, no período abrangido pela quebra de sigilo bancário e fiscal ‘evidenciaram a movimentação de valores em montante manifestamente superior à renda licitamente auferida a título de salários’.
Campbell aponta para a ‘aquisição de imóveis de altíssimo padrão, sem a correspondente transferência de ativos, das contas bancárias do desembargador para as contas das empresas incorporadoras’.
Os investigadores chamam a atenção para a análise das contas bancárias e a aquisição de bens de ‘altíssimo luxo’. “Foram constatadas movimentações suspeitas entre ele e sua esposa Maria de Lourdes Ferreira. No ano de 2023, por exemplo, período em que foram constatados diálogos comprometedores entre João Ferreira Filho e Roberto Zampieri, a DECRED (registros do uso de cartões de crédito) evidenciou que foram gastos em cartão de crédito a quantia de R$ 1.364.179,76, a despeito de terem sido recebidos, a título de salário, R$ 1.192.130,58.”
“É dizer, no ano de 2023, período em que a maior parte dos diálogos comprometedores entre advogado e magistrado foi constatada, João Ferreira Filho gastou em seu cartão de crédito muito mais do que recebeu de salários, sendo os proventos oriundos do Tribunal de Justiça de Mato Grosso sua única fonte de renda declarada”, destaca o corregedor da Justiça.
Para Campbell, ‘o montante em apreço é expressivo, e evidencia que o magistrado partiu de uma fatura média de cartão de crédito da ordem de R$ 41.916,66 mensais para notáveis R$ 113.681,64 mensais’.
O ministro é taxativo. “A alegação defensiva de que o ‘saldo’ acumulado pelo magistrado nos anos anteriores teria possibilitado que ele fizesse frente ao expressivo gasto executado em 2023, ano em que João Ferreira Filho gastou em seu cartão de crédito quase duzentos mil reais a mais do que de fato recebeu do Tribunal, é manifestamente inverossímil e não encontra guarida na prova reunida nos autos.”
Sacada com churrasqueira
O Estadão apurou que o desembargador declarou à Receita a compra de apartamentos de alto padrão por valores dezenas de vezes inferiores ao real desembolso.
Em uma única transação, por exemplo, a diferença bateu em pelo menos 43 vezes. Foi na aquisição de um imóvel de ‘altíssimo padrão’ no empreendimento ‘Apogeo, a singularidade do ápice’ – imponente construção no bairro Goiabeiras, em Cuiabá, com até quatro suítes em 238 metros quadrados. Ferreira Filho informou ter pago R$ 59.666,50, em 2020 (cerca de R$ 85 mil atualizados), ao passo que unidades estão à venda por R$ 3,7 milhões.
A investigação revela que Ferreira Filho adquiriu outros três apartamentos do empreendimento Soul, ‘sacada com churrasqueira’, também na capital de Mato Grosso, seguindo a mesma rotina de subvalorização.
Em sua declaração de ajuste anual de imposto de renda, em 2023, Ferreira Filho declarou ‘tardiamente’ os apartamentos 1202 e 1702, pelo módico valor de R$ 21.500,09 cada um. Mas a incorporadora, ao apresentar a Declaração de Operações Imobiliárias (DOI), informou como valor de aquisição o montante de R$ 472 mil e R$ 434 mil, respectivamente – ou 21 vezes maior do que aquele informado pelo desembargador em sua Declaração de IR Pessoa Física.
Em uma outra compra, no mesmo condomínio, o desembargador lançou pagamento em valor 28 vezes menor ao que efetivamente realizou. Segundo os investigadores, seria uma estratégia de Ferreira Filho para ocultar a origem ilícita do dinheiro.
Ao votar pela abertura de procedimento disciplinar em face de João Ferreira Filho, o ministro Mauro Campbell, corregedor nacional de Justiça, citou um outro desembargador, Sebastião de Moraes Filho, que também está sob suspeita de ligação com venda de sentenças. “À semelhança do que fora observado em relação ao desembargador Sebastião de Moraes Filho, ademais, a influência que o advogado (Roberto Zampieri) exercia sobre o magistrado João Ferreira Filho o encorajava a agir de forma velada, mesmo que não estivesse formalmente constituído nos autos, intermediando com os demais advogados a prolação de decisões judiciais mediante o pagamento de vantagens indevidas, a qual era posteriormente partilhada entre ambos.”
Para o corregedor, ‘os interesses intermediados pelo advogado Roberto Zampieri foram integralmente acolhidos pelo desembargador, a evidenciar que, de fato, foi proferida decisão judicial com desvio de função, mediante o pagamento de vantagem indevida’.
Com a palavra, defesa
Ao Conselho Nacional de Justiça, o desembargador João Ferreira Filho, por meio de sua defesa, rechaçou a prática de atos ilícitos e gastos excessivos, além dos subsídios que recebe do Tribunal de Justiça de Mato Grosso. Os advogados do magistrado consideram que a análise da quebra do sigilo bancário e fiscal do magistrado ‘não é conclusiva’ e indica ‘em essência uma evolução patrimonial decorrente de rendimentos auferidos ao longo de mais de 35 anos no cargo em que ocupa’.
Sobre o fato de o magistrado ter gastado R$ 1.364.179, 76 com faturas de cartão de crédito em 2023, embora tivesse recebido R$ 1.192.130,58 no mesmo período, a defesa sustenta que ‘os saldos positivos nos anos antecedentes fazem frente ao gasto expressivo observado em 2023’.
Para a defesa, ‘tal excedente, somado ao exercício de mais de trinta anos do cargo de magistrado do Estado de Mato Grosso, totalizam uma renda capaz de fazer frente aos expressivos gastos observados no período, eliminando as supostas inconsistências observadas em sua evolução patrimonial’.