Ministros do STF divergem sobre atuação do MP na liquidação coletiva de sentença

O Supremo Tribunal Federal tem duas correntes distintas no julgamento em que o Plenário discute se o Ministério Público pode promover a liquidação coletiva de sentenças em casos sobre direitos individuais homogêneos — ou seja, que têm origem em uma mesma situação. A discussão definirá se o MP pode direcionar o conjunto das indenizações para os atingidos mesmo se as pessoas não se habilitarem para isso e estabelecer a maneira como a reparação será feita.
O julgamento, que tem repercussão geral, foi suspenso na última sexta-feira (16/5), poucas horas após começar, devido a um pedido de vista do ministro Flávio Dino. Antes disso, dois magistrados já haviam votado. Dias Toffoli considerou que o MP não pode promover essa liquidação. Já Alexandre de Moraes entendeu que o órgão tem, sim, legitimidade para isso.
Os casos tratam de direitos individuais homogêneos quando há muitos afetados pelo mesmo fato: consumidores prejudicados por má prestação de serviços ou cancelamentos, segurados da Previdência Social prejudicados por determinados cálculos ou reajustes inadequados em seus benefícios, pessoas atingidas por rompimentos de barragens, poluição ambiental ou obras de infraestrutura etc.
Nessas situações, o MP é uma das entidades que podem mover ações civis coletivas em nome das vítimas (o próprio Supremo já confirmou isso). A Justiça, então, pode reconhecer o direito delas a uma reparação pelos danos sofridos. Mas a forma de reparação e os valores só são definidos na fase de cumprimento.
A discussão é se o MP também pode atuar em nome das vítimas nessa segunda etapa, ou se cada um dos atingidos precisa fazer a liquidação individual e ajuizar sua própria execução para receber sua indenização.
O Código de Defesa do Consumidor (CDC) já autoriza o MP a promover a liquidação e a execução quando ninguém se habilitar individualmente. Mas, nesses casos, o órgão precisa esperar o prazo de um ano e a indenização — chamada de reparação fluida — vai para um fundo público. O STF busca decidir se o órgão poderia atuar nessa fase sem aguardar eventuais liquidações individuais.
Contexto
O caso tem origem em uma ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público de Mato Grosso do Sul. Em primeira instância, uma faculdade de Campo Grande foi condenada a restituir parcelas contratuais exigidas de alguns alunos com base em cláusulas consideradas nulas. O Tribunal de Justiça estadual manteve a decisão.
A discussão foi parar na Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça. Lá, os ministros entenderam que o MP não pode promover a liquidação ou a execução coletiva referente aos danos sofridos pelas vítimas antes da liquidação individual — ou seja, a liquidação da sentença coletiva deve ser feita por cada um dos beneficiários, já que os direitos são individuais.
O recurso extraordinário foi apresentado ao STF pelo Ministério Público Federal e o pelo MP de Minas Gerais. Os órgãos argumentam que o entendimento do STJ contraria a missão constitucional do MP na defesa dos interesses sociais e coletivos. Para eles, a substituição dos indivíduos na etapa de cumprimento da decisão viabiliza o acesso à Justiça.
Voto do relator
Toffoli, relator do caso, afirmou que o MP não tem legitimidade para promover a liquidação e a execução de sentenças em ações civis coletivas sobre direitos individuais homogêneos, exceto nas situações de reparação fluida. Ele também propôs que sua tese não se aplique a processos em andamento com sentença transitada em julgado até a data de publicação da ata de julgamento.
Segundo o magistrado, a liquidação e a execução, nesses casos, devem ser promovidas, “primordialmente, pelas vítimas e por seus sucessores”.
Para o relator, o que permite a atuação do MP na primeira fase do processo é o “trato impessoal e coletivo dos direitos subjetivos lesados”. Assim, a existência de beneficiários “previamente definidos” na segunda etapa vai de encontro a esse requisito.
Ou seja, “o interesse social qualificado” que autoriza o MP a ajuizar uma ação civil coletiva sobre direitos com origem em comum “não remanesce na fase de liquidação” da sentença.
Na visão de Toffoli, se o Ministério Público for responsável por liquidar sentenças do tipo, “suas outras funções institucionais da mais alta estatura constitucional poderiam ficar seriamente comprometidas”, pois o órgão assumiria “um volume de trabalho potencialmente incompatível com suas efetivas capacidades”. Ele ressaltou que o MP já tem diversas outras funções.
Voto divergente
Alexandre divergiu do relator, pois constatou a legitimidade do MP para promover a liquidação e a execução coletiva dessas sentenças em favor das vítimas ou de seus sucessores quando houver interesse social.
De acordo com ele, o que autoriza o MP a ajuizar uma ação civil pública é “a demonstração da existência de um interesse social no objeto de demanda, e não propriamente a natureza individual ou coletiva de tal interesse”.
Por consequência, também há “relevância social” para a liquidação e a execução da sentença em uma ação como essa, já que são fases igualmente necessárias para resolver a disputa.
“A efetivação dos direitos individuais homogêneos reconhecidos possui tanta — ou maior — relevância social quanto o seu reconhecimento, ainda que nesse momento haja um maior destaque para a individualidade de tais interesses”, disse o ministro.
Para Alexandre, de nada adianta limitar a atuação do MP à obtenção de uma decisão genérica se o órgão for impedido de “conferir eficácia” a ela.
O ministro ressaltou que isso só favoreceria o “causador do ato ilícito”. Por outro lado, as vítimas não teriam seus direitos concretizados, o Judiciário sofreria com a “multiplicação de demandas”, casos semelhantes ou idênticos seriam tratados de forma distinta e o sistema jurídico não seria efetivo.
Apoio na doutrina
Edilson Vitorelli, desembargador do Tribunal Regional Federal da 6ª Região e professor de Direito Processual Civil, explica que a liquidação coletiva pode acontecer em “causas repetitivas” nas quais “pessoas são lesadas de forma igual ou similar”.
Como exemplo, ele lembra que o Judiciário já considerou ilegais as taxas cobradas por faculdades privadas para emissão de diplomas. Nesses casos, a instituição de ensino “sabe exatamente quanto cobrou, de quem cobrou, quando cobrou, quais são os dados pessoas dessa pessoa etc.”.
Logo, para ele, “é perfeitamente possível que a decisão seja cumprida sem que cada uma delas provoque o Poder Judiciário para fornecer essas informações”. O MP poderia usar os dados já disponíveis e “desenhar um mecanismo para que o pagamento seja feito”.
Segundo o desembargador, isso é bom para as vítimas, que conseguem a reparação; para o réu, que não precisa responder a milhares de execuções; e para o Judiciário, que não sofre uma sobrecarga desnecessária de processos.
“É assim que se faz em todos os países que têm sistemas robustos de processos civis coletivos, como os Estados Unidos, o Canadá e a Austrália”, acrescenta.
Segundo Sergio Cruz Arenhart, procurador regional da República e também professor de Direito Processual Civil, a liquidação coletiva ainda permite que o valor da indenização a ser recebida seja creditado diretamente para cada vítima.
Em um caso no qual ele atuou, houve pedido expresso para que as indenizações fossem creditadas nos benefícios previdenciários de aposentados que foram obrigados a comparecer a agências do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) para recadastramento.
Vitorelli destaca que as próprias agências reguladoras brasileiras atuam dessa forma: com frequência, “determinam que os agentes regulados lancem descontos nas contas de consumo das pessoas em razão da suspensão do fornecimento do serviço”.
Um trabalho acadêmico assinado pelos dois professores e por Hermes Zaneti Jr. foi citado no voto de Alexandre para defender a liquidação coletiva por parte do MP.
Arenhart aponta que isso enfrenta resistências na advocacia porque, se houver execuções individuais, o advogado fatura uma parte do que for recebido por seu cliente. Se o MP atuar nessa fase, a vítima sequer precisará contratar um advogado. Segundo o procurador, a liquidação coletiva também é mais benéfica à vítima porque ela não precisa pagar as custas do processo.
Barrar essa atuação do MP, diz ele, também é conveniente para os “réus coletivos de massa” — ou seja, aqueles que costumam cometer violações dos direitos de muitas pessoas. Muitas vezes, apenas parte da população atingida promove liquidação e execução individual da sentença. Uma boa parcela se conforma, avalia que o custo do processo não vale a pena, não encontra os documentos necessários ou sequer sabe da existência da decisão.
Apesar da possibilidade de reparação fluida, Arenhart ressalta que o dinheiro é revertido a um fundo cujos recursos podem ser contingenciados e que tem gastos com finalidades completamente distintas. O valor ainda é estimado, o que nem sempre garante o efeito de “reprimir a conduta ilícita do réu”. Vitorelli indica que, no caso do fundo federal (o Fundo de Direitos Difusos), o dinheiro sequer é gasto.
O desembargador destaca que a maioria das ações coletivas (aproximadamente 90%) é proposta pelo MP. Para ele, “a solução mais econômica é permitir que a execução siga de forma coletiva, sempre que isso for possível”, até para evitar ações desnecessárias.
Na sua opinião, a liquidação individual só deve ocorrer quando “a intervenção das pessoas seja necessária para o cumprimento da decisão” — por exemplo, se for preciso fornecer comprovantes de que a lesão ocorreu.
A grande crítica feita pelos réus é que a liquidação coletiva dificulta sua defesa, pois, em alguns casos, não há como determinar o valor individual de maneira precisa. Já o procurador afirma que essa atuação do MP não é aplicável para todos os casos, mas apenas “quando isso for possível”.
De acordo com Arenhart, o voto de Toffoli mostra “uma sensibilidade para essa situação dos réus”, assim como foi no STJ.